domingo, 5 de julho de 2009

PRONTO SOCORRO.


BAHIA |05.07.2009 - 09H47

Superlotação faz com que médicos decidam quem continua a viver




Jorge Gauthier | Redação CORREIO

“A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação (...) Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica (...)”. Quando um formando em medicina profere o discurso criado por Hipócrates, considerado o pai da profissão, não imagina o nível de enfrentamento que terá ao longo de sua carreira se decidir trabalhar nas emergências e urgências.

A superlotação das unidades de saúde obriga os médicos a esquecer o emocional e agir com a frieza dos números na hora de decidir quem vai ter o direito de continuar a viver.

A coordenadora da emergência de um grande hospital público de Salvador, de 41 anos, que pediu sigilo de identidade, conta que a escolha pela vida do alheio traz consequências difíceis. “A todo momento, temos que ser um pouco de Deus e escolher quem vai viver e quem vai morrer. Somos humanos e tomar essa decisão é muito complicado. A família do paciente não quer saber que apenas um poderá ser salvo”, contou, escondida, em entrevista ao CORREIO numa sala no hospital onde trabalha.

As noites de sono de um médico de 59 anos que há 25 trabalha nas emergências do Hospital Geral do Estado e Roberto Santos deixaram de ser tranquilas há anos. Semana passada, quando estava de plantão no Roberto Santos, o médico tinha apenas uma vaga na UTI e dois pacientes com problemas renais: um idoso de 80 anos e um rapaz de 34.

“Avaga foi para o mais jovem, pois tem mais expectativa de vida. O idoso acabou morrendo na espera. Quando eu perco um paciente, fico muito mal, mesmo sabendo que fiz o meu melhor”.

O profissional faz acompanhamento com psicólogo para tentar diminuir os traumas das perdas de pacientes. “Já perdimuito paciente na maca, na cadeira ou até dentro da ambulância. Isso me revolta muito. Parece que meus anos de estudo não valeram de nada. Quando estou de folga, sonho com pacientes gritando por ajuda. Tomo calmante para dormir”. O presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia, José Caires Meira, diz que a maior dificuldade é ter que esquecer o lado humano na hora de decisão.

Emergências lotadas e doutores nervosos
“Calem a boca. Eu não aguento mais. Se não tiver silêncio, eu vou ficar maluca, saio por aquela porta e não atendo mais ninguém”. Essas palavras foram ditas por uma pediatra no Hospital São Rafael.

A médica, de 32 anos, conta que vive angustiada. “Fico nervosa em ver tanta gente sofrendo e a emergência transbordando. Mal consigo dormir e voltei a beber e fumar”.

O presidente da Sociedade Brasileira de Urgência e Emergência, Antônio Carlos Lopes, alerta que 100% dos médicos que trabalham nesses setores desenvolvem problemas psicológicos. “O profissional tem que decidir pela vida de alguém e acaba levando as mazelas dessa decisão para sua vida particular”.

Profissionais são agredidos nos hospitais
Plantão de 24 horas com luvas rasgadas, equipamentos obsoletos e sala de descanso com sofá furado. De acordo com José Caires Meira, presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia, essa é a situação que os médicos do Hospital Roberto Santos precisam encarar diariamente.

“Nessas circunstâncias, não tem médico que fique motivado. Trabalhamos no nosso limite”, reclama. Outra médica do mesmo hospital, que prefere não se identificar, está indignada com a estrutura da unidade. “A sala de descanso dos médicos parece um muquifo. Não temos nem água para beber e o sofá da nossa sala de repouso está furado. É difícil trabalhar assim”.

O represente do sindicato reclama que, além dos problemas estruturais, ainda é preciso conviver com o excesso de pacientes. “É humanamente impossível para o médico dar conta de tantos pacientes de uma vez só. Quem está com um parente precisando ser atendido não quer saber se o médico está sobrecarregado. Eles gritam, reclamam e nós ficamos cada dia mais nervosos”.

Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Urgência e Emergência, indica que há uma indiferença dos médicos que trabalham em emergências no tratamento aos pacientes.

“Os profissionais são obrigados a deixar a humanização do lado de fora da emergência superlotada. Os familiares dos pacientes transferem a responsabilidade pelo caos, que é do Estado, para o médico. Em função disso, há casos de médicos que chegam a ser agredidos nos hospitais”. A Secretaria da Saúde do Estado da Bahia foi procurada pelo CORREIO, mas até o fechamento da edição não se pronunciou.

Carga de trabalho é até quatro vezes maior
A Comissão Nacional de Urgência Médica estabelece que o profissional da área médica deve trabalhar no máximo 60 horas por semana. Na prática, esse fluxo é bem maior.

Um médico plantonista do Hospital Roberto Santos chega a atender 100 pessoas por plantão de 12 horas. É menos de dez minutos para cada paciente. A realidade não é diferente na clínica médica. Um oftalmologista do mesmo hospital, por exemplo, atende 80 pacientes por turno, sem o apoio de auxiliares. O ideal é que fossem atendidos apenas 20.

O presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia, José Meira, que atua como clínico no Roberto Santos, afirma que as condições de trabalho dos médicos são as piores possíveis.

Qualificação médica é deficiente, diz especialista
O médico Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Urgência e Emergência, aponta que a formação dos médicos que trabalham em plantões hospitalares é inadequada.

Lopes, que também preside a Sociedade Brasileira de Clínica Médica e é professor titular de clínica médica e medicina de urgência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) acredita na realização de psicoteste como um dos critérios de seleção dos novos profissionais.

Ele defende os médicos mais experientes, que fogem dos hospitais deixando as emergências nas mãos de recém- formados, que, segundo ele, não teriam pulso firme na condução de uma unidade.

Lopes possui graduação em medicina pela Universidade Federal de São Paulo (1970) e doutorado em medicina (cardiologia) pela Universidade Federal de São Paulo (1978). Foi secretário executivo da Comissão Nacional de Residência Médica e diretor do Departamento de Residência e Projetos Especiais na Saúde da Secretaria da Educação Superior do Ministério da Educação (2004/2007). Tem experiência em clínica médica, medicina de urgência, cardiologia e medicina intensiva.

Psicotestes já!
Em que a formação inadequada dos médicos interfere no sistema de saúde?
A primeira coisa que acontece é o grande índice de retorno de pacientes que não têm os seus problemas resolvidos. Além disso, há uma série de diagnósticos errados que geram complicações no estado do paciente. Tem médico que trata uma simples gripe como se fosse uma pneumonia, por exemplo.

Qual a principal falha da preparação dos médicos que se reflete nas emergências?
Muitas escolas de medicina deveriam ser fechadas no Brasil, pois elas apenas fazem a transferência de conhecimento. O médico deve receber formação humanística para entender que está lidando com pessoas. As faculdades criam técnicos de aparelhos e não médicos.

O processo seletivo das universidades avalia as habilidades necessárias para selecionar o futuro médico?
Não. Atualmente os vestibulares permitem que qualquer pessoa ingresse no curso de medicina. A primeira coisa que deveria voltar eram os psicotestes, como acontecia na década de 70.

Qual seria o benefício de uma avaliação mais criteriosa? Livrarapopulaçãodemédicos despreparados. Já tivemos casos de candidatos que eram esquizofrênicos e conseguiram aprovação no vestibular.

Os médicos recém-formados têm a capacidade de assumir um plantão de emergência?
As emergências estão lotadas de médicos recém-formados que ainda não têm nenhuma estrutura profissional para encarar um plantão de 24 horas. As residências, obrigatórias para a conclusão do curso, não são efetivas na capacitação dos médicos.

(notícia publicada na edição impressa do dia 05/07/2009 do CORREIO)

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