Médicos no inferno
O intelectual paulista Samuel Pfromm Neto, autor de dezenas de livro e centenas de textos publicados no país e no exterior, relatou sua experiência voluntária de ingressar numa fila do sistema único de saúde – em São Paulo, convém salientar – e ter experimentado o constrangimento pelo qual passam milhões de brasileiros todos os dias. Setuagenário, o professor Pfromm Neto comoveu a platéia do V Encontro Nacional da História da Mídia, evento que a Rede Alfredo de Carvalho realizou no início deste mês na capital paulista. O relato foi tão claro e intenso que recompôs o cenário de horror diante dos olhos da platéia acomodada no conforto do auditório do Centro de Integração Empresa Escola – CIEE –, localizado no bairro do Itaim. As lágrimas desceram.
No último final de semana, em Salvador, sem que me propusesse a tal experiência, reingressei no cenário de horror ao acompanhar meu irmão ao Hospital Geral do Estado e ao Hospital Roberto Santos. Recém-exonerado, ele perdeu o amparo do Planserv e o que lhe restou nas 72 horas de sucessivas crises renais foi o SUS. Acompanhei ele nas duas ocasiões e cresceu em mim a admiração pelos profissionais da área médica, sobretudo pela capacidade de manter o compromisso de servir mesmo que seja no inferno.
De sexta-feira para sábado, estivemos na unidade de triagem do Hospital Geral do Estado durante quatro horas. Meu irmão foi examinado e medicado e, enfim, liberado quando a dor cedeu. Havia apenas dois médicos para 10, 20 pacientes e a toda hora chegavam outros. O espaço era insuficiente para tanta gente – a maior parcela constituída de pacientes e acompanhantes –, reduzido ainda mais por causa das muitas macas congestionando os corredores. Nas quatro horas em que ali estive, testemunhei, mantendo o mais absoluto silêncio diante do cenário, assim como fizera em São Paulo ao ouvir do professor Pfromm Neto, o que é o inferno.
Entre as 22h de sexta-feira e as 02h da madrugada de sábado, vi os médicos lutarem bravamente contra a morte de duas anciãs. Uma foi salva. A outra, cumpridos os procedimentos que um centro de triagem – que não é um centro cirúrgico – autorizam, morreu. É leviano concluir, mas ouso lançar a hipótese, de que a cada quatro horas, num grupo de 20 atendimentos, um paciente morre. Morre porque o atendimento é precário, o local é inadequado, faltam equipamentos e é pequeníssimo o número de médicos e auxiliares. Vi, por exemplo, um auxiliar de enfermagem recolher numa jarra de boca larga e sem tampa a urina drenada e depositada nas bolsas localizadas ao pé das camas dos pacientes mais graves. O desfile daquela jarra sem tampa entre pessoas moribundas me pareceu impróprio.
O sábado de meu irmão foi sem dor, mas no domingo houve nova crise e o bolso nos recomendou voltar ao hospital público. Desta vez, imaginando que seria um outro quadro, fomos para a emergência do Roberto Santos. Ali tampouco o número de médicos pareceu-me adequado para a demanda e a variedade de casos. O médico que atendeu meu irmão prescreveu o medicamento e a enfermeira indicou uma maca que acabara de vagar. Na maca vizinha, um ancião obeso que a si abandonara em algum momento lá atrás na vida, apodrecia. Seus acompanhantes comentaram que havia larvas comendo-lhe os órgãos sexuais porque descuidara da higiene há muito tempo.
Desejei muito não ter testemunhado nada disso. Mas continuo desejando muito que nossos médicos e auxiliares tampouco precisem continuar trabalhando neste inferno.
Muda Brasil!
* Luis Guilherme Pontes Tavares é jornalista, produtor editorial e professor universitário.
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